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Diagnósticos diferenciais e conduta no atendimento de animais com alterações neurológicas

Mais uma vez...


Quando se atende um caso neurológico, deve-se responder às seguintes perguntas:

1. Os sinais clínicos observados são devidos a alterações no sistema nervoso?
2. Qual é a localização da lesão no sistema nervoso?
3. Quais são os principais tipos de doenças capazes de gerar essas alterações? 
4. Baseado na resposta à terceira pergunta, deve-se determinar a conduta a ser seguida e o prognóstico

No último post foi discutido sobre a localização das lesões no sistema nervoso. Após determinação do diagnóstico anatômico (ou seja: determinar onde se encontra a lesão), deve-se responder às perguntas 3 e 4: o que pode estar causando o quadro e o que deve ser feito?

Como mencionado no post sobre exame neurológico, para a determinação dos diagnósticos diferenciais (ou seja: responder à questão 3) deve-se compilar todas as informações obtidas até o momento, como:

- identificação e anamnese 
Existem alguns fatores levantados durante a identificação e anamnese que devem ser levados em conta, por exemplo:

  • RAÇA Sabe-se que cães da raça daschund têm uma tendência maior a apresentar discopatias do que outras raças, não condrodistróficas.
  • IDADE Ainda quanto às discopatias, tal alteração pode ser encontrada em animais com idade superior a um ano, sendo rara sua apresentação em cão com idade inferior a um ano de idade.
  • ESPÉCIE Continuando a discussão sobre as discopatias: tais alterações são muito mais frequentes em cães do que em gatos.   

- histórico, principalmente no que diz respeito ao início e progressão dos sinais neurológicos
Deve-se questionar como e quando o quadro se iniciou, se o animal apresentou outros sinais (por exemplo: nos casos de intoxicação o animal pode apresentar tremores, vômito, diarréia, alterações cardiorrespiratórias), qual foi a progressão do quadro (houve melhora?/piora?/ou se manteve da mesma forma?) e dados gerais como presença de outros animais em casa (e estado de saúde dos mesmos), estado vacinal do animal, se tem acesso à rua e etc.
É especialmente importante questionar sobre a progressão do quadro, uma vez que as diferentes categorias de doenças capazes de gerar alterações neurológicas tendem a ter apresentação clínica diferente principalmente no que diz respeito à progressão dos sinais.
Na neurologia existe o acrônimo (DAMNITV) que inclui todas as categorias de doenças capazes de gerar alteração neurológica: Degenerativas, Anômalas, Metabólicas, Neoplásicas, Infecciosas/Inflamatórias, Traumáticas/Tóxicas ou Vasculares
Sabe-se que as alterações TRAUMÁTICAS, VASCULARES E AS INTOXICAÇÕES em geral têm apresentação aguda (ou seja: o animal estava normal e de um momento para o outro apresenta-se alterado) e que melhora com o tempo.
Já as alterações INFLAMATÓRIAS, INFECCIOSAS, NEOPLÁSICAS E DEGENERATIVAS em geral têm apresentação crônica e progressiva (a doença tem início insidioso e vai piorando com o passar do tempo).
As alterações METABÓLICAS em geral têm apresentação flutuante, havendo melhora ou piora dos sinais de acordo com a variação da condição metabólica do animal.
As alterações ANÔMALAS em geral têm apresentação relativamente estática (os sinais se mantêm com o passar do tempo).

Fonte: Martins e Melo, 2013

- dados observados durante o exame físico
Assim como o levantamento de histórico e anamnese, a realização de exame físico é imprescindível sempre que se avalia um animal com quadro possivelmente neurológico. Nunca negligencie essa avaliação! Pode-se observar diversas alterações que podem ajudar na construção do raciocínio clínico para o diagnóstico da condição neurológica:

  • Em casos de processos infecciosos pode-se observar alterações ao exame físico como hipertermia, linfadenomegalia e etc. 
  • Pode-se identificar tumores de mama em cadelas, que podem apresentar metástase para o sistema nervoso central ou mesmo sinais neurológicos relacionados a síndromes paraneoplásicas. 
- localização da lesão e possíveis alterações capazes de gerar déficit nessa região
Diferentes neurolocalizações geralmente estão relacionadas com diagnósticos diferenciais distintos. Veja por exemplo esta tabela que cita os principais diagnósticos diferenciais para problemas espinhais em pequenos animais. Nota-se que os diagnósticos diferenciais para mielopatias cervicais são diferentes daqueles para mielopatias lombares. Além disso, percebam que sintomatologias multifocais estão frequentemente relacionadas a condições infecciosas.  


Fonte: Dewey e Da Costa, 2016

Ao fim do exame, utilizamos todas essas informações para montar o "quebra-cabeça" do raciocínio clínico e responder às questões 3 e 4 (diagnósticos diferenciais e conduta a ser seguida).


Segue exemplo 
(já exibido neste blog e discutido em https://vet.ufmg.br/casos_clinicos/arquivo/11 )
Cão macho, yorkshire, de 9 anos de idade, não castrado, pesando 4 kg. Foi encaminhado ao setor de neurologia com a queixa de dificuldade de deambulação progressiva e sensibilidade cervical há 1 mês.
Não apresentou qualquer alteração ao exame físico. Ao exame neurológico notou-se tetraplegia, ausência de propriocepção nos 4 membros, tônus normal a aumentado para os 4 membros com manutenção de reflexos espinhais, ausência de reflexo cutâneo do tronco, percepção de dor supercial mantida.


 

Respondendo às questões
1. Os sinais clínicos observados são devidos a alterações no sistema nervoso? Sim. A presença de plegia e a ausência de propriocepção nos indicam que trata-se de um caso neurológico e não ortopédico. 
2. Qual é a localização da lesão no sistema nervoso? C1-C5. Tetraplegia, déficit proprioceptivo para os 4 membros, tônus normal a aumentado para os 4 membros, reflexos mantidos para os quatro membros (na ausência de sinais indicativos de lesão encefálica como depressão do nível de consciência) - sinais de NMS para os 4 membros.
3. Quais são os principais tipos de doenças capazes de gerar essas alterações? De acordo com a tabela de Dewey e Da Costa, os principais diagnósticos diferenciais para mielopatias cervicais craniais são discopatias, subluxação atlantoaxial, neoplasia, síndrome de wobbler, trauma. A ausência de histórico de trauma torna pouco provável subluxação atlantoaxial e trauma. Ficamos com os principais diagnósticos diferenciais discopatia, neoplasia e mielites infecciosas/inflamatórias (por conta do quadro crônico progressivo, comum em condições degerativas, neoplasicas e infecciosas/inflamatórias).
4. Baseado na resposta à terceira pergunta, deve-se determinar a conduta a ser seguida e o prognóstico. Deve-se iniciar com uma radiografia do segmento cervical cranial (preferencialmente com o animal sedado e sempre em duas projeções LL e VD) e um exame para avaliação da saúde geral (hemograma e perfil bioquímico). A partir desses exames, pode-se solicitar (para a principal suspeita, que é discopatia): mielografia, tomografia computadorizada ou ressonância magnética. Os exames de imagem também podem auxiliar para confirmar/descartar o possível diagnóstico de neoplasia e mielite. Especificamente para a suspeita de mielite, o exame de líquor seria de grande valia para a investigação.



À radiografia visibilizou-se redução do espaço intervertebral em C3-C4, C5-C6 e C6-C7, o que é sugestivo de discopatia, que foi posteriormente confirmada pela mielotomografia. O animal foi enxaminhado para cirurgia (slot ventral), com retorno satisfatório da deambulação 2 semanas após o procedimento.





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