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Introdução à neurologia veterinária

Mas...neurologia de animais??

Segundo informações divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao ano de 2013, 44.3% dos lares brasileiros apresentavam pelo menos um cão e 17.7% tinham pelo menos um gato de estimação. Os dados mostraram que o país apresentava mais pets que crianças de até 14 anos.

A vida do homem moderno em centros urbanos conectado as mídias sociais e com hábitos cada vez mais solitários tem contribuído para a criação de fortes vínculos entre os tutores e seus animais de estimação, que são vistos como membros da família.  Nesse contexto, a forte ligação proprietário - pet tem gerado esforços desmedidos por diagnóstico e tratamento adequado desses animais por especialistas. Apesar de ser uma subárea pouco praticada e até um pouco temida pelos médicos veterinários, a neurologia veterinária apresenta alta casuística nos atendimentos clínico-cirúrgicos de pequenos animais.

Funcionamento e disfunções do sistema nervoso em cães e gatos

O sistema nervoso de cães e gatos é dividido em sistema nervoso central (SNC) e sistema nervoso periférico (SNP). O SNC é constituído pelas estruturas intra-cranianas (prosencéfalo, tronco encefálico e cerebelo) e medula espinhal. Já o SNP é composto por gânglios, nervos,  junções neuromusculares e músculos. Todas essas estruturas agem em conjunto para manter a fisiologia normal dos animais. O adequado funcionamento do sistema nervoso garante padrões normais de comportamento, estado mental, postura, marcha, respiração, função gastrointestinal, função urinária e etc. Desse modo, existe uma grande variedade de sinais indicativos de alteração neurológica, que devem ser identificados o quanto antes. De acordo com os sinais apresentados ao exame neurológico o veterinário deve ser capaz de localizar o problema e traçar um plano para fechar o diagnóstico e realizar o tratamento adequado para cada situação.
Segue um resumo simplificado de sinais de disfunção das diversas regiões do sistema nervoso (cada região específica será discutida nos posts subsequentes, bem como futuramente serão expostos neste blog vídeos e fotos  de casos clínicos exemplificando cada apresentação):

Alterações em prosencéfalo (telencéfalo + diencéfalo):
Andar em círculos; obnubilação; head pressing; alteração no ciclo de sono-vigília; andar compulsivo; alteração de comportamento; desorientação espacial; perda de comportamento aprendido como urinar e defecar em locais específicos; crises epilépticas; déficits visuais; tônus normal a aumentado nos 4 membros; geralmente há déficit de propriocepção consciente e resposta à ameaça contra-laterais á lesão; geralmente não há ataxia ou paresia.

Alterações em tronco-encefálico:
Hemi/tetra paresia/plegia; ataxia vestibular; tônus normal a aumentado nos 4 membros; pode haver envolvimento de outros nervos cranianos (déficits ipsilaterais à lesão ao exame neurológico); pode haver sinais de síndrome vestibular; depressão de estado mental/sonolência; déficit proprioceptivo ipsilateral à lesão . Em lesões graves pode haver a postura de rigidez descerebrada (aumento de tônus nos 4 membros, com opistótono e depressão de estado mental).

Alterações em cerebelo:
Ataxia cerebelar; hipermetria; tremores de intenção; manutenção de estado mental sem alteração; pode haver nistagmo; ausência de déficit de propriocepção consciente; pode haver déficit de resposta à ameaça.

Alteração em medula espinhal cervical cranial (segmentos medulares C1-C5):
Tetra/hemi paresia/plegia; ataxia proprioceptiva; tônus normal a aumentado nos 4 membros; deficit de reflexos posicionais (propriocepção consciente, saltitamento e etc) nos 4 membros; manutenção de reflexos espinhais (MTS: flexor; MPS: patelar e flexor) nos 4 membros.

Alteração em medula espinhal cervical caudal (segmentos medulares C6-T2):
Tetra/hemi paresia/plegia; ataxia proprioceptiva; tônus reduzido em membros torácicos (MTS) e normal a aumentado em membros pélvicos (MPS); presença de hipotrofia na musculatura epaxial de MTS; deficit de reflexos posicionais nos 4 membros; reflexos espinhais reduzidos a ausentes em MTS e normais em MPS.

Alteração em medula espinhal toracolombar (segmentos medulares T3-L3):
Para/mono paresia/plegia; ataxia proprioceptiva; tônus normal em MTS e normal a aumentado em MPS;  reflexos posicionais em MTS sem alteração e MPS apresentando deficit, reflexos espinhais sem alteração em MTS e MPS.
*Em casos de traumatismos agudos e graves dessa região pode haver uma apresentação diferente conhecida como Schiff-Sherrington.

Alterações em medula espinhal lombossacra (segmentos medulares L4-S3):
Para/mono paresia/plegia; ataxia proprioceptiva; tônus normal em MTS e reduzido em MPS; presença de hipotrofia na musculatura epaxial de MPS; reflexos posicionais em MTS sem alteração e MPS apresentando deficit; reflexos espinhais sem alteração em MTS e reduzidos em MPS; pode haver redução de reflexo perineal e tônus de cauda e incontinência ou retenção urinária e fecal.

Alterações em região de cauda equina (caudal a segmentos medulares S3):
Sensibilidade em região lombossacra; dificuldade em se levantar, sentar ou pular; MPS apresentando déficit proprioceptivo,  redução do reflexo flexor (de retirada), andar rígido, claudicação, pode haver auto-mutilação. Além disso, podem ser observados hipotonia de cauda e incontinência urinária/fecal. Pode haver paraparesia porém não há paraplegia nem ataxia devido a estenose degenerativa lombossacral (síndrome compressiva da cauda equina).

Alterações em SNP:
Paresia/plegia; intolerância ao exercício; pode haver tremores devido à fraqueza; redução de tônus nos 4 membros; pode haver ventro-flexão do pescoço devido a redução de tônus de musculatura dessa região; reflexos espinhais reduzidos a ausentes nos 4 membros, hipotrofia na musculatura epaxial.

A qualquer sinal de alteração neurológica procure um especialista. Quanto antes forem instituídos o correto diagnóstico e tratamento maiores as chances de recuperação do paciente.

                                   

                                                 Por: Maria Paula Rajão Costa Coelho
                                                            mprajao@gmail.com

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